segunda-feira, 25 de junho de 2007

1, 2, 3, 4.


1.
O chão está frio. Ele não se importa, não ao ponto de parar, ou de ao menos pensar em colocar os sapatos... Segue caminhando descalço no chão gelado. Essas calças de pijamas já estão curtas, pode ver suas canelas, daqui há pouco poderá ver seus joelhos, porque as calças estão curtas e ele não pára de crescer... Não sei se pensaria assim quando tinha três anos... Não sei se pensaria em calças curtas e em estar crescendo tanto... Mas hoje, lembrando-se daquele dia pensou... É como se houvesse feito toda essa reflexão sobre os pijamas e o crescimento com três anos de idade. Nada disso. Naquele dia certamente ele apenas caminhava pelo chão frio com os pés descalços... e caminhava rápido e nas pontas dos pés para chegar logo onde queria. Lá estava ele, saindo da cama e indo ao encontro da mãe na cozinha sem antes calçar os sapatos.
Os dias frios da infância parecem tão mais frios quando ele se lembra deles hoje. Assim como tudo me parece ser tão mais triste. Não sabe se era triste naquele tempo. Talvez nem sequer perecebesse os motivos que faziam sua infância estar longe de ser a infância que queria... Porque naquele tempo talvez ele nem pensasse em querer uma infância diferente… Não pensava em nada disso, ou se pensava , não lembrava mais.
O chão ainda está gelado sob seus pés, vê as canelas no pijama curto, procura sua mãe que deve estar fazendo café na cozinha… Sente frio…
A casa é escura e triste. Uma casa não pode ser triste. Tristes eram as pessoas… Ou triste é lembrar disso tanto tempo depois.
O chão frio faz com que o percurso que separa seu quarto da cozinha fique ainda mais longo… Caminha rápido e parece nunca chegar aonde quer… Os pés gelados…
Acordar e sair andando pela casa vazia a procura de alguém era o momento em que sentia-se só e corajoso. Desbravando o espaço sem que ninguém o controlasse ou protegesse… Imaginava –se astuto e rápido, passando entre os leões selvagens que dormiam no corredor da casa, pronto para lutar caso algum deles acordasse e resolvesse atacar…Estava na selva do seu corredor e tinha alguns minutos dessa aventura excitante até que sua mãe o visse
“meu deus, o que vc está fazendo fora da sua cama? E descalço nesse piso frio…” Então ela o tomava nos braços e o devolvia ao colchão.Ele não era mais o herói desbravador do perigoso caminho entre o quarto e a cozinha. Era apenas um menino no colo da mãe…

2.
O chão está frio. Ele sai do banho e esquece de calçar os chinelos. O banheiro branco inunda-se com a luz do sol da manhã. Tudo é claro no banheiro branco. Pára em frente ao espelho embaçado para fazer a barba. Os pés no piso frio do banheiro o fazem ter pressa para sair dali e calçar seus sapatos. Uma gota vermelha emerge na face depois de um movimento mais afoito com a lâmina de barbear. A pressa… Ele sabe que poderia parar, calçar os chinelos e fazer a barba tranquilamente. Não faz isso. Ele não age tranquilamente. Estanca o sangue com um minúsculo pedaço de papel higiênico. O pequenino retalho branco de papel adere á pele recém barbeada e logo tinge-se de vermelho também. Um círculo vermelho bem no meio do retâgulo branco de papel. E ele pensa que tem a bandeira do Japão em sua face.
Fica uns instantes parado, olhando a sua pequena bandeira do Japão…
O chão gelado sob os pés o faz lembrar que precisa se apressar. Gosta de ficar horas detido em seus pensamentos, em suas pequenas imaginações, suas observações pueris a respeito de tudo. Não pode mais. Tem que trabalhar agora. Os momentos em que divagava sobre o nada ou qualquer coisa que lhe parecesse interessante em frente ao espelho o faziam ter a sensação de ser especial. Queria habitar esse mundo que trazia na cabeça. Queria ser sútil e sonhador. E respirar uma espécie de éter que o levasse pra longe. Mas o relógio marcava seu tempo e o trabalho o esperava. Ele não era mais o gênio com olhos de lince capturando detalhes tão discretos do mundo que ninguém mais podia ver. Era apenas um homem que tinha que trabalhar…

3.
Levanta-se devagar.
Move-se tão lentamente que nem pode acreditar que é a mesma pessoa que sempre teve tanta pressa ao acordar…
O chão frio debaixo dos seus pés descalços…
Calça um chinelo lentamente.
Olha para a cama vazia.
Quer voltar e domir pra sempre.
Os pés quentes, protegidos pelo chinelo de feltro…
Silêncio durante seus momentos de inércia…
Sente as pálpebras pesadas sobre os olhos, sente os braços pesados querendo chegar ao chão, a vida pesada sobre as costas…
Não vai a lugar algum. Fica parado diante da cama. Nenhuma pressa, nenhuma urgência…
Pensa em beber alguma coisa. Desiste. Beber pela manhã não parece boa idéia. Nada lhe parece boa idéia.
Olha para a cama mais uma vez.
Vazia.
Consegue chegar até a cozinha . Anda tão lentamente que parece não estar andando. Sente-se como se fora levado por algo ou alguém. Prepara um café. Esbarra na xícara que cai no chão e se parte em dois pedaços grandes. Pega outra xícara. A primeira permanece no chão, quebrada em dois pedaços.
Agora ele não tem mais nenhuma pressa. Pode ficar olhando os dois pedaços da xícara que nunca mais se juntarão. Ele não é mais alguém que precisa correr para o mundo e começar a trabalhar.
É apenas um homem sem vontade.

4.
Ele está frio.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Prozac



O bar não poderia ter nome mais apropriado: Van Gogh! Algumas garrafas de cerveja sobre a mesa. Algumas doses de tequila fazendo uma viagem alucinante pela minha corrente sangüinea, eu, alguns conhecidos e aquela mulher que se aproximou de nós e acabou sentando com a gente. Era uma daqueles momentos bizarros, um encontro de pessoas bizarras... A mulher era uma mistura de prostituta junkie com professora de catequese. Aquela cara branquinha, aquele olhos azuis , aquele comportamento mais do que vulgar, aquelas roupas de dançarina de grupo de pagode prestes a se aposentar...
Um corpo que não era bonito, magro demais...um rosto que não era bonito, cansado demais... E roupas que ela jamais deveria usar. Ela era vulgar! Mais vulgar do que qualquer outra naquele bar, mais vulgar e barata que qualquer outra... Esperava tudo daquela mulher, menos que ela fosse capaz de formular frases.

- Será que o Prozac pode acabar com a arte? – disparou entre um gole de tequila e outro.
Fiquei em choque. De onde ela tirou essa idéia?
- De onde você tirou essa idéia? – perguntei imediatamente.
- Ué, vocês estavam falando que arte é um jeito de agüentar as angústias, que arte só existe porque existe a angústia, o Prozac acaba com as angústias , então pensei que o Prozac poderia acabar com a arte também... – ela respondeu sem pestanejar.
- Hã?! – eu, estupefato, sem saber o que dizer.
Ela me olhava e sorria singelamente mostrando seus dentes amarelados de tanto cigarro enquanto esperava minha resposta.
- Não sei – respondi – E você, o que acha?
- Pra mim não muda nada, não sou artista. Só admiro vocês que podem fazer essas coisas, se eu pudesse pintava um monte de quadros e botava na minha sala. Ou então vendia…
- Mas quando você tem angústias o que você faz?
- Isso que eu tô fazendo agora?
- Isso o quê?
- Vou a um bar e sento na mesa de um desconhecido, qualquer um, um cara solitário, carente, que esteja afim de papo e me pague uma bebida. Fico falando umas bobagens, encho a cara de tequila e esqueço as minhas tristezas, esqueço tudo…

Não ousei perguntar, mas era óbvio que naquela noite o desconhecido solitário, carente, e afim de papo com qualquer pessoa era eu. Aquela mulher decadente, abandonada, mal vestida, feia e magra que eu permiti que se sentasse na minha mesa como um favor, uma concessão, um ato de caridade que se faz para um ser necessitado acabara de dizer que me via como um cara solitário, carente, louco por qualquer companhia e otário, que paga a bebida que ela não pode pagar...

- Tu acha que arte só existe porque as pessoas são angustiadas? – ela insistiu em me interrogar.
- Não sei – eu repsondi, meio confuso...
- Se tu vai num psicólogo, tu não precisa mais ser artista , né?
- Sei lá. – eu não sabia mais o que dizer.
- Mas será que vale a pena? Acho melhor ser artista do que ir no psicólogo e depois não saber mais pintar nada.
- Pode ser...- aquilo já estava me irritando muito.
- Eu não tenho psicólogo e não sou artista, que merda, né?

Fiquei mudo. Não sabia mais o que dizer para aquela criatura que me interpelava com questões tão complexas. Bebi mais um gole de tequila tentando ganhar tempo até que me ocorresse uma resposta que justificasse a impáfia com que eu a havia tratado até o momento…
Observei-a cuidadosamente. A saia curta de Lycra preta, a miniblusa de um tecido metalizado, as costelas que apareciam no corpo magro, os seios pequenos e bem abaixo do que deveriam estar…
Ela bebeu o último gole de tequila que havia em seu copo enquato rabiscava algo em um guardanapo com a caneta que o gaçon deixara sobre a mesa… Olhava para mim como se soubesse que eu não tinha resposta. Seus olhos fundos… me olhavam com uma esperteza que eles definitivamente não tinham dez minutos antes… Percebeu meu contragimento, deve ter se enchido da minha companhia, sei lá…
Levantou-se .

- Tudo bem, gato, não fica pensando nisso, não… Prozac, arte, médico… No fim é tudo a mesma bosta… Vou nessa…

Carimbou minha bochecha com seu batom vermelho vivo e saiu cambaleante, esbarrando nas pessoas que estavam por perto. Pensei em chamá-la de volta. Nem sequer sabia seu nome. Também achei que não seria bom me humilhar novamente dizendo que queria a companhia dela, e que ela se revelara uma companhia interessante, e que eu até começara a ver um certo charme em sua face marcada de rugas e maquiagem barata…
Esbocei um aceno.. Ela nem viu. Foi bêbada por entre as mesas até sumir porta afora…
O guardanapo rabiscado ficou sobre a mesa: Úrsula, Úrsula, Úrsula, Úrsula, Úrsula…

terça-feira, 12 de junho de 2007

Os homens são todos iguais.



"Os homens são todos iguais." Dediquei uma parte da minha vida a combater essa afirmação feminina. Classificar os homens como todos iguais tirava de mim o meu mais precioso atributo: a originalidade. Ser um homem diferente sempre me envaideceu muito mais do que qualquer outra coisa. E sempre ouvi isso como um elogio. Ás vezes demorava, devo admitir, e eu era obrigado a me superar em minhas habilidades de homem feminino para que uma ou outra moça mais durona me dissesse a tão almejada frase. Sempre chegava o dia em que eu ouvia:“ você é um homem diferente”. Soava como música aos meus ouvidos e, juro, acreditava que isso fazia de mim uma experiência inesquecível. Sendo eu um produto tão raro no mercado mundial de homens disponíveis, a minha cotação chegaria às alturas. Claro que eu desejava ser disputado a tapa pelas moçoilas sedentas por um pouco de compreensão. Afinal é isso que todo o mortal deseja. Nunca fui disputado a tapa. E minha cotação no tal mercado nunca foi lá grande coisa.
Essa parte da vida estava estagnada, sem surpresas, sem grandes alegrias e as decepções também não eram de tirar o fôlego de ninguém. Ou seja, fazia lá o meu papel de homem sensível sem muita dificuldade. Esforçava-me para sê-lo da forma mais digna possível. Em nome disso eu fazia coisas incríveis como discutir a relação antes mesmo que ela fizesse as malas e dissesse que estava indo embora para sempre ou prestar atenção quando ela dizia que seu cabelo era horrível e que nenhum cabeleireiro conseguiria consertar. Lá estava eu, levando minha vida de homem sensível e diferente dos outros...
Uma nova moça surgiu, eu outra vez lancei mão de todo o meu arsenal de sensibilidade masculina para que ela me dissesse o mais rápido possível o quanto eu era diferente de qualquer outro. Ela não disse. Por mais que eu me esforçasse, me mostrasse interessado em ouvir tudo o que ela tinha a dizer sem cochilar nenhuma vez, ela não dizia. Parecia estar completamente desinteressada pela minha sensibilidade. Isso me deixava louco. Mas ela gostava de sexo, e demonstrava isso de forma a não deixar sombra de dúvida. Isso também me deixava louco. Foi numa dessas noites animadas que ela me veio com a frase que derrubaria o meu império de homem moderno e original. “ Seu pau é grande”, ela me disse. Assim mesmo, sem rodeios, sem floreios, sem vergonha. Olhou para o dito cujo e disparou. Naquele momento eu descobri o que era uma frase soar como música aos meus ouvidos. Isso sim foi uma orquestra sinfônica de Berlim detonando a mais poderosa sinfonia de Beethoven na minha orelha.
Fiquei extasiado, boquiaberto, sem respiração... Meu peito instintivamente foi se inflando, meus olhos semiserraram-se, minha boca esboçou um discreto sorriso somente no lado direito... A frase repetia-se na minha cabeça como se houvesse sido pronunciada numa enorme catedral onde o eco se encarregasse de multiplicá-la milhares de vezes...
Sei que devem estar se perguntando quem me garante que ela estava falando a verdade... Ninguém garante. E ninguém se importa. Eu não me importo. O importante é que falou. E que algo aconteceu dentro de mim naquele momento. Eu acabara de ouvir a frase mais linda do mundo, acabara de descobrir que estava com a mulher mais linda do mundo e começava aquela que seria a trepada mais linda do mundo. E foi mesmo... E como naquela noite eu me permiti ser previsível e comum e igual a todos os outros... E como eu gostei dessa sensação... E como eu senti orgulho do meu pau... Me senti grato por ele existir, por me dar tantas horas de alegria, por ter estado sempre pronto quando eu precisei. Tá bom, tá bom, nem sempre, eu admito… Mas que importância tem que ele não tenha comparecido uma vez ou outra? Na maior parte das vezes ele sempre esteve lá, meu amigo de fé, meu irmão camarada. E tomou vida depois daquela noite. Hoje eu converso com ele. Digo palavras que o animam quando ele está cabisbaixo demais, incentivo quando ele está dando tudo de si: “- vamo lá, amigão, não me decepciona....”
Bem, é verdade que eu não sou mais tão sensível quanto era antes. Mas também não sou tão só. Hoje tenho a companhia de todos os homens do mundo. E me solidarizo com eles. Até com aqueles que batizam o próprio pênis com algum apelido ridículo e dizem isso em público. Entendo o que eles sentem. Sentir esse orgulho é a coisa mais séria e profunda que pode acontecer a um homem embora seja bastante ridículo também. E todo o homem precisa disso para se sentir homem de verdade. Embora esse negócio de se sentir homem de verdade seja mais ridículo ainda. Enfim, homens são ridículos... Homens de verdade são mais ainda…E todos são definitivamente iguais. E não me venham com teorias femininas a respeito disso. Teorias não me interessam em nada, jamais me proporcionaram um décimo da satisfação que sinto a cada vez que lembro daquela frase de novo. Além disso, discutir a relação sempre foi uma chatice, homem sensível é um porre, cavalheirismo é do século passado e homens heterossexuais, hoje em dia, depilam o peito e fazem bronzemento artificial…
Ahhhh, tenham a santa paciência!