segunda-feira, 16 de março de 2020

Desperto. Muito anos depois...

Desperto.
Ontem a tristeza me pegou violentamente no meio do dia. Entre um choque anfetamínico e outro, entre as chuvas químicas que têm feito meu cérebro um deserto úmido em que a única coisa que resiste viva é a esperança de ver um oásis verde ao longo desta caminhada. A tristeza foi anunciada por dias, semanas, veio meio que vagarosamente, meio que indecentemente sedutora, traiçoeira, e caiu na minha cama `as seis da manhã. Veio como uma mulher infiel que depois de uma noite de sexo e delícias adúlteras repousa ao meu lado no leito, dia já clareando... Ela já suada, cansada, lambuzada de um gozo do qual não participei, me abraça apertado e me beija no rosto antes de cair num profundo sono. Seus tentáculos elásticos se enrolam em meu corpo e me imobilizam, sua respiração me rouba o oxigênio e me joga num transe, num limbo entre o sono e a vigília. O dia, recém-nascido, recolhe sua luz dos meus olhos. Ela respira diretamente em minha face, inspiro o ar quente que sai de sua boca, inspiro seu hálito, seu suor, seu sexo. Recolho a energia que iniciara o movimento meus músculos para abandonar os lençóis e começar o dia. Caio de novo sobre o pano branco amarrotado que cobre a cama. Afundo neste ninho quente e tóxico, os tentáculos entram pelas minhas narinas, pelos ouvidos, pelos olhos...  Sinto as mucosas úmidas lentamente avançando sobre cada um dos meus orifícios. Sinto-as frias ocupando meus pulmões, minhas tripas, meu crânio. Sinto todo o meu corpo de uma vez só, revirado, invadido, sendo corroído por dentro, fornecendo as calorias que ela necessita para sobreviver agarrada a mim por mais um dia. A cada instante morro mais, a cada instante ela vive mais. A única força que reconheço em mim nestes primeiros minutos após o sono químico do qual acabo de sair move meu braço até a gaveta da mesa de cabeceira e agarra o papel prateado onde o meu despertador anfetamínico está. Tomo duas pílulas de uma só vez. Pulo da cama, livro-me dos tentáculos. Corro até a cozinha e ligo a jarra elétrica que me dará a água suficientemente quente para passar um café. Vejo o líquido que entra transparente e saí turvo do coador. Está fervendo. Nas manhãs tudo se resume a temperaturas. São friezas e quenturas. Bolhas de fervura. Posso sentir os neurotransmissores assustados com aquela dose medicamentosa. Pego a outra maravilha química que regula o meu cérebro a nunca ser tão exageradamente feliz como já foi, junto tomou a outra pílula que não deixará que eu seja tão covardemente atacado pela depressão como já fui antes.  Tomo as duas de uma vez só. Está tudo ok agora: cérebro despertado e capaz de se concentrar, humor devidamente regulado. Estou acordando, estou começando a viver. Se inaugura mais um dia sob a égide da magia farmacêutica. Quantos capítulos escreverei? Quantas laudas serei capaz de entregar ao impaciente editor que me sustenta com o escasso dinheiro que me dá? Pego minha enorme caneca de café puro, sento-me na sala, em frente ao computador. Tomo mais um gole de café. Ela ficou na cama e eu sigo em fuga, até a hora em que ela me encontre em algum canto do meu apartamento escuro. Começa meu dia. Começa, começa.


DURATE A TARDE
Um dia agitado. Energia, Energia. Me vejo diante de um computador, vários arquivos abertos ao mesmo tempo. Odeias espalhadas, palavras rachadas ao meio construindo ruinas de textos que já nascem aos escombros. Nada se conecta, nada se. Completa, minhas mãos tremem. Vou morrer. Vou abandonar tudo. A bolsa desabou, meu dinheiro na bolsa... O corona vírus, vou morrer... A boca seca imediatamente. O ar condicionado aos 18 graus não é capaz de aplacar o meu calor, suo, escorrem gotas de suor pela minha testa. Somente a miséria me espera. Minhas mãos tremem mais. Levanto esgotado e trêmulo, vou até a gaveta da mesa de cabeceira. Um calmante, um químico delicado que me ponha para dormir. Tomo dois de uma vez. Entro debaixo do chuveiro de roupa e tudo. A água fria, o calmante, a agua e a minha química diária. Vou melhorar. Não tenho coragem de dirigir agora. Passa o pior. Estou me acalmando. Não reconheço qual parte do meu corpo ferve, borbulha, queima... Tampouco reconheço os lugares em mim que estão congelados... as geleiras e os fogaréus dançam e brincam dentro de mim. Tudo se resume a temperaturas.

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